A Revolução dos Cravos não foi apenas um brilhante golpe de Estado militar que levou à democracia. Raquel Varela considera-a mesmo o processo revolucionário social mais radical da Europa do pós-guerra. Nesta grande entrevista ao jornal Work, a historiadora explica porque é que atualmente quase não se fala na revolução e o que está por trás da recente vitória eleitoral da extrema-direita.
Raquel Varela (45)
Work: Dra. Raquel Varela, a senhora diz que a Revolução dos Cravos começou em África. Pode explicar?
Raquel Varela: Eu diria mesmo que a revolução portuguesa não começou com o célebre golpe de Estado militar de 25 de abril de 1974, mas já em 1961 – com uma greve de trabalhadores da colheita de algodão, em Angola. Tratava-se de trabalhadores em regime forçado de uma empresa luso-belga. A administração colonial portuguesa reagiu de forma brutal à greve. A força aérea bombardeou vinte aldeias com bombas de napalm.
A sério?!
Mais de 10 000 pessoas morreram queimadas. Foi este massacre que desencadeou definitivamente a luta de libertação anticolonial em Angola. Pouco tempo depois, também nas ex-colónias Guiné-Bissau e Moçambique os oprimidos pegaram em armas. Esta resistência levou ao descontentamento no exército português. Durante os 13 anos de guerra contra a sublevação anticolonial, 200 000 homens fugiram ao serviço militar, 8 000 desertaram e 9 000 perderam a vida. E quanto mais a situação se tornava difícil para Portugal, mais cresciam as fações militares de cariz democrático. No dia 25 de abril de 1974, conseguiram finalmente levar a cabo o golpe de Estado.
Que militares foram estes que se insurgiram de repente contra a ditadura?
Não eram membros da velha elite militar, mas jovens oficiais milicianos e de origem pequeno-burguesa. Estavam estacionados nas colónias e tinham de comandar manobras difíceis e com elevadas perdas. Depressa se aperceberam de que esta guerra não podia ser ganha e que era necessária uma solução política. No entanto, a ditadura nunca mostrou predisposição para tal. Com o seu golpe, os oficiais pretendiam uma revolução política em prol da democracia burguesa.
Mas o povo queria mais do que a democracia burguesa!
De facto, o golpe de Estado abriu imediatamente a porta ao processo revolucionário social mais radical da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Centenas de milhares de pessoas entraram em greve, milhões participaram em manifestações, apesar do recolher obrigatório imposto pelos golpistas, centenas de empresas foram ocupadas e colocadas em regime de autogestão dos trabalhadores, o proletariado rural ocupou um quarto das terras agrícolas e criou cooperativas e, nas cidades, famílias dos bairros de lata ocuparam milhares de casas devolutas. E, em todo o país, cerca de um terço da população participava em comissões de trabalhadores ou em comités de bairro. Nunca a consciência e o orgulho de classe foram tão acentuados como na altura!
Já não se ouve falar muito desta parte da Revolução 25 de Abril.
É claro que a burguesia atual não tem qualquer interesse em recordar à classe operária aquilo de que ela é capaz e que foi ela que criou um país completamente novo. Não podemos esquecer que, após o golpe de Estado, em muitas empresas foram os trabalhadores que de repente impuseram as regras. Geriram as empresas democraticamente e, muitas vezes, sem patrão. Para a burguesia – incluindo a estrangeira, foi um pesadelo, o pior acontecimento depois da derrota dos americanos no Vietname! Era evidente que estava em curso uma revolução socialista, mas não se sabia para onde ia.
Quem deve ter ficado satisfeito foi o Partido Comunista, que tinha acabado de sair da ilegalidade.
Mas só até certo ponto. Porque o PCP não estava interessado num processo revolucionário a partir de baixo. Não queria abolir o capitalismo em Portugal, mas sim regulá-lo. Isto porque o partido seguia os princípios da União Soviética, que se regia pela distribuição do poder na Europa, decidida na Conferência de Ialta, em 1945. Portugal pertencia, portanto, ao Ocidente capitalista e foi membro fundador da NATO em 1948. O PCP estava determinado a impedir a intervenção ocidental e, por isso, tentou controlar a agitação nas empresas e conter as numerosas greves e ocupações.
Qual foi o papel dos sindicatos neste contexto?
Já tinham sido proibidos nos anos 1930 ou transformados em associações fascistas e corporativistas. No final dos anos 1960, quando António de Oliveira Salazar, ditador de longa data que se encontrava seriamente debilitado, foi afastado do poder pelos seus seguidores, houve uma breve fase de „degelo“. Mas a repressão não tardou a regressar. A liberdade de associação só foi instituída após o 25 de Abril e o PCP começou imediatamente a ocupar as centrais sindicais e a tomar o poder. O PCP esteve também na origem da criação da Intersindical. Em pouco tempo, esta organização contava com mais de um milhão de filiados.
E isso não inclui os membros das comissões de trabalhadores?
Exatamente. Havia muito mais pessoas nas comissões de trabalhadores. Também tinham lá mais poder do que nos sindicatos. Estas comissões eram órgãos autogeridos, de democracia direta, em que as pessoas eleitas podiam ser destituídas a qualquer momento pelas bases. Existiam mais de 5.000 comissões deste tipo em todo o país, uma dimensão que dificilmente podemos imaginar atualmente. Havia, portanto, uma dupla distribuição do poder, típica das revoluções: por um lado, o poder do Estado, das instituições e dos sindicatos e, por outro, o poder das comissões de trabalhadores.
No seu livro sobre a Revolução dos Cravos, descreve-a como o “movimento social mais progressista” da época. Surgiu da “nação mais atrasada da Europa”. Até que ponto Portugal era atrasado?
Tínhamos as taxas de mortalidade materna e infantil mais elevadas de toda a Europa, bem como os salários mais baixos. Um terço da população não sabia ler nem escrever. Havia censura, polícia política, apenas meios de comunicação social estatais, um partido único, não havia eleições livres nem sufrágio universal. A situação das mulheres era catastrófica. Não podiam viajar sem autorização do marido. No entanto, ele podia abrir-lhe a correspondência. E o divórcio era proibido aos católicos.
Mas mesmo o hino revolucionário “Grândola, vila morena” só fala da “terra da fraternidade”. Então, onde é que estavam as mulheres?
Ah, as mulheres foram muito importantes na revolução. Estavam nas comissões de trabalhadores e sobretudo nas comissões de moradores. Foram as mulheres que decidiram, em 1974, que a partir de agora haveria creches e que ocuparam edifícios inteiros para o efeito. Foram também as mulheres que criaram centros de saúde ou que alargaram o sistema dos transportes públicos. A lista é longa. É importante saber que, apesar de as mulheres terem sido extremamente oprimidas durante a ditadura, também tinham um poder considerável como trabalhadoras. De facto, em nenhum outro país havia tantas mulheres empregadas como em Portugal. Isto devia-se simplesmente ao facto de milhares de homens terem emigrado ou estarem a cumprir serviço militar.
Não classifica a ditadura de Salazar como fascista. Porquê?
Para mim, o que é decisivo é a questão de saber quem detém o poder no Estado. Numa ditadura clássica de tipo bonapartista, o monopólio do uso da força pertence ao exército. Nos sistemas fascistas, pelo contrário, existem também milícias. A SA (organização paramilitar, nota da tradução) do nacional-socialismo ou as “Fasci di combattimento” de Mussolini são exemplos disso. Em caso de dúvida, são estas milícias que asseguram a “ordem” e não o exército. Portugal viveu de facto um período fascista com milícias deste tipo durante a guerra civil de Espanha de 1936-1939. Na altura, o exército português incluía elementos que não queriam apoiar Franco, o golpista fascista, mas sim a República Espanhola democraticamente legitimada. No entanto, após a vitória de Franco, Salazar extinguiu as milícias.
A ditadura passou à história há cinquenta anos. Mas nas eleições legislativas de março passado, o Chega, partido de extrema-direita, saiu vencedor. Será que se aproxima um regresso à idade das trevas?
O resultado das eleições foi um choque. A extrema-direita obteve 18% dos votos, quadruplicou os seus lugares no Parlamento e é agora a terceira maior força. Contudo, não estamos na iminência de uma ditadura. As conquistas democráticas estão sem dúvidas ameaçadas. Não só em Portugal, como em toda a Europa. A concentração da riqueza nas mãos de poucos está a exacerbar as tensões sociais. E os mais ricos e o seu Estado respondem tradicionalmente de forma autoritária.
Mesmo assim, até agora a extrema-direita em Portugal era totalmente insignificante. Em termos europeus, isto era quase único. Como é que isto se explica?
São os efeitos da Revolução dos Cravos! Depois de 1974, Portugal teve um enorme movimento revolucionário de esquerda. E o PCP tornou-se também um dos principais partidos comunistas da Europa. Mas com o apoio dos partidos da esquerda ao governo socialista a partir de 2017, começou o declínio. Infelizmente, o governo não alterou nenhuma das leis antilaborais que a troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional, nota da redação) nos tinha ditado durante a crise financeira de 2010 a 2014. Realizaram-se muitas greves, mas o governo socialista respondeu com medidas antigreve muito duras. Tudo isto levou à desmoralização de muitas pessoas de esquerda, que deixaram de ir às urnas. A fraqueza da esquerda deu espaço ao desabrochar da direita.
Mas, apesar disso, o Partido Socialista conseguiu alcançar resultados durante os seus últimos oito anos de governo. A economia está em franca expansão e o desemprego diminuiu drasticamente.
No entanto, só uma minoria beneficia desse crescimento. 70% dos portugueses e portuguesas têm de fazer horas extraordinárias ou arranjar um segundo emprego para fazer face às suas despesas. O salário mínimo nacional ronda os 700 euros. No entanto, um estudo da Faculdade de Economia de Lisboa concluiu em 2019 que seriam necessários pelo menos 1300 euros para cobrir as necessidades básicas. Mas, desde então, a inflação disparou. Aliás, os salários reais estão a cair há trinta anos. A situação no setor público é verdadeiramente dramática. Os hospitais essenciais têm de fechar e milhares de alunos não têm professores. E a situação não vai, certamente, melhorar com o novo governo de direita.
Raquel Varela: Professora universitária e comentadora da televisão
Raquel Varela (45 anos) é professora de História na Universidade Nova de Lisboa e uma das mais prestigiadas historiadoras, especializada na área de conflitos sociais e movimento operário. O seu livro „História do Povo na Revolução Portuguesa“ (traduzido em inglês em 2019) é uma obra de referência sobre a Revolução dos Cravos. Em Portugal, Varela é conhecida a nível nacional porque participa regularmente em debates políticos na televisão.